leitura do dia


“Abalanço-me a continuar com passo ligeiro, visto que lestes até aqui. O que vem é mais importante do que aquilo que antecede. A meninice de um personagem não é fácil de contar mas tinha de o fazer para vos dar uma ideia exacta do Zorro. A infância é uma época desgraçada, cheia de temores infundados, como o medo de monstros imaginários e do ridículo. Do ponto de vista literário, não tem suspense, já que, salvo excepções, as crianças costumam ser um pouco desenxabidas. Além disso, não têm poder – os adultos decidem por elas e fazem-no mal. Inculcam-lhes as suas próprias ideias erróneas sobre a realidade e depois os miúdos passam o resto das suas vidas a tentar livrarem-se delas.”

p. 109

escada em caracol

É uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.

Os degraus, quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.

Quem tem medo não a sobe.
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
O lastro do coração.

Sobe-se numa corrida.
Corre-se p’rigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão.

David Mourão-Ferreira

desobediência civil


A possibilidade de desobediência a algumas leis baseia-se em algum argumento de ordem moral que mantem a noção geral de obrigação política como significativa.
Mais, não existe apenas um modo de desobedecer às leis numa democracia.

Em termos gerais, a avaliação da maioria dos teóricos que se dedicam ao tema da desobediência civil é a de que os que praticam esses actos de desobediência percebem o sistema em que vivem como razoavelmente justo, de modo a requererem apenas uma reforma limitada e não uma reforma radical. Nessa concepção padrão, a desobediência civil tem a intenção principal de chamar a atenção dos outros cidadãos para um determinado problema político ou uma determinada lei injusta.

A desobediência civil, para Rawls, seria constituída por “a public, nonviolent, conscientious yet political act contrary to law usually done with the aim of bringing about a change in the law or policies of the government” que, além disso, “adress the sense of justice of the majority of the community” (RAWLS, 1971, p. 364). Assim a desobediência não é apenas a rejeição da lei, mas também um estabelecer de diálogo com o sistema político, com os governantes e com todos os concidadãos.

Talvez se consiga visualizar que a desobediência civil pode aparecer como a contrapartida da obrigação política: não tão radical como um movimento armado que procura derrubar as autoridades constituídas, nem tão brando como uma simples discordância pública a respeito da lei promulgada.

Posso voltar ao assunto, mais tarde – até porque gosto da ideia de Arendt de que a desobediência civil é uma forma política de discordância…
Numa democracia, o dever de obediência às leis está ligado ao direito de voto; ora, o que está a ser posto em causa, em última instância, é precisamente o valor desse direito de voto, da eleição livre por sufrágio universal.

Para Arendt, a desobediência civil representa um empenhamento activo no mundo (e para o mundo) e deve ser claramente distinguida da objecção de consciência.
Chamar a atenção para uma lei injusta ou para uma causa justa assim como apelar à consciência pública são motivos possíveis de desobediência civil, enquanto acto não violento praticado com o intuito de provocar uma mudança.

Os movimentos de desobediência civil apresentam-se como oposição de minorias, como um modo fundamental de expressar a liberdade política, de tornar visível o protesto e de reivindicar o direito de participar na construção da comunidade e do destino comum.

Das palavras – universidade

A palavra, hoje, é universidade.
Enquanto universitas scientiarum, é o sítio onde procura passar-se da mera opinião sobre todas as coisas ao conhecimento de todas as coisas, enquanto conhecimento do todo…
… e, já agora, onde se procura integrar o socialmente útil no sentido da existência em colectivo – portanto, em ligação à condição humana.

A universidade não é uma escola do saber fazer, mas onde se aprende a aprender…
… onde os licenciados têm licença de continuar a estudar.
Portanto, há que recuperar processos (clássicos) das discussões livres e generalizadas, abertas e ecléticas, de modo que se permita a difusão do universal (da uni-di-versidade).

Porque a ciência, para citar Voegelin, não é a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência humana em sociedade; é uma tentativa de formular o próprio sentido da existência…

Teias de Borges

Los Conjurados

“En el centro de Europa están conspirando.
El hecho data de 1291.
Se trata de hombres de diversas estirpes, que profesan diversas religiones y que hablan en diversos idiomas.
Han tomado la extraña resolución de ser razonables.
Han resuelto olvidar sus diferencias y acentuar sus afinidades.
Fueron soldados de la Confederación y después mercenarios, porque eran pobres y tenían el hábito de la guerra y no ignoraban que todas las empresas del hombre son igualmente vanas.
Fueron Winkelried, que se clava en el pecho las lanzas enemigas para que sus camaradas avancen.
Son un cirujano, un pastor o un procurador, pero también son Paracelso y Amiel y Jung y Paul Klee.
En el centro de Europa, en las tierras altas de Europa, crece una torre de razón y de firme fe.
Los cantones ahora son veintidós.
El de Ginebra, el último, es una de mis patrias.
Mañana serán todo el planeta.
Acaso lo que digo no es verdadero; ojalá sea profético.”

Jorge Luis Borges, Los Conjurados
Alianza Editorial, Madrid 1985

efeméride


Na noite de 25 de Julho de 1956, ocorreu um dos maiores desastres marítimos de sempre:
a colisão do Andrea Doria com o Stockolm.

Não seguir as “Regras de caminho” (Rules of the Road) , no que reporta aos procedimentos, parece ter sido uma das principais razões.
Supostamente, os navios viram à direita em caso de possível choque no mar – quando o Stockholm virou à direita, o Andrea Doria virou à esquerda e não houve a menor hipótese de evitar a colisão. Também se apontou o excesso de velocidade com visibilidade reduzida…

A bordo da Andrea Doria estavam 1.705 pessoas. No total, foram salvas 1.659 pessoas.
Levou cerca de 10 horas a afundar.

citação do dia

“A ideia de uma acção, crença, intenção, inferência ou emoção irracional é paradoxal.
Isso porque o irracional não é apenas o não-racional, que se encontra fora do âmbito do racional; a irracionalidade é uma falha dentro da casa da razão. Quando Hobbes diz que somente o homem tem o “privilégio do absurdo”, está querendo dizer que somente a criatura racional pode ser irracional.
Irracionalidade é um processo ou estado mental – um processo ou estado racional – que falhou.
Como isso é possível? O paradoxo da irracionalidade não é tão simples quanto o aparente paradoxo contido no conceito de uma piada mal sucedida, ou de uma obra de arte ruim. O paradoxo da irracionalidade surge a partir daquilo que está envolvido em nossas maneiras mais básicas de descrever, entender e explicar estados e eventos psicológicos.”

Donald Davidson
Paradoxos da Irracionalidade

chamaram a minha atenção….

… para o
«I Encontro Português de Filosofia Prática»
Data: 29 de Agosto de 2005
Local: Auditório 1 da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Avenida de Berna, 26 C – 1000 Lisboa

Para consultar o Programa, é dar um saltinho a página da APAEF – Associação Portuguesa de Aconselhamento Ético e Filosófico.

Das palavras – eufemismo

Foi por causa de um tema musical acerca de um tal «Lado Lunar» que me pareceu que eufemismo é uma palavra a ter em conta…

Do grego, euphemismós, “bem-dizer”, ou seja, o acto de suavizar a expressão de uma ideia, substituindo a palavra própria por outra mais agradável, mais polida. É uma figura de linguagem, que é figura de pensamento.

Assim, trata-se de brandura nos termos utilizados. Que socialmente é amável – porque remove o indecoroso, o desagradável – mas pode ser bem perigoso. O problema será o excesso de expressões que embelezam ou, pelo menos, procuram atenuar a crueza e a dureza das coisas que designam.

Fala-se em crise de empregabilidade quando se deveria falar em desemprego. Trocamos mendigos por «sem abrigo» e conflito armado por «guerra». A comunicação social tem nestas transformações muita relevância.
Algumas das expressões que circulam não são expressão de polidez mas de engano e de (desculpem a inépcia para o eufemismo!) estupidez.
Uma coisa feia não se embeleza quando a linguagem a falseia: continua feia e, o que é pior, fica menos compreensível a sua fealdade.

Não defendo a rudeza vocabular mas também não posso deixar de pensar que o eufemismo é uma manta colorida para aspectos mais delicados do real, tanto que chega à hipocrisia e à mistificação. A onda do politicamente correcto e do socialmente adequado… de não chamar algumas coisas pelos nomes pode conduzir a processos enganosos de pensamento colectivo.
Ou não?!

70 * pensamento do dia

«As parvoíces em que temos de nos meter para chegarmos onde temos de chegar, a extensão dos erros que precisamos de fazer! Se nos informassem antecipadamente de todos os erros, diríamos não, não posso fazer isso, têm de arranjar outro qualquer, eu sou demasiado esperto para fazer essas asneiras.
(…) cometeremos os erros numa escala que nem podemos sonhar agora: porque não existe nenhuma outra maneira de atingir o fim.»

Philip Roth
‘Teatro de Sabbath’

a partir das cenas…

Vejo um filme como oportunidade de entretenimento, de aprendizagem, de “linkagem” de coisas… Entre a arte e a técnica, com ponte para a metáfora e a analogia…

Foi, entre outros, o caso de Madagáscar. Produção da Dreamworks Animation, subsidiária do estúdio de Steven Spielberg, o filme parece querer chegar a todos – por isso, houve tantas alturas em que apenas (alguns) adultos riam na sala. Há coisas difíceis de perceber para as crianças…
Duas partes bastantes distintas numa história simples, em que o desejo de fuga à rotina acaba por conduzir a uma estranha (e perigosa) transformação do melhor amigo.

Destaco o Rei Julian, o «autoproclamado», cuja visão da realeza é notávelmente “humana” tanto nas coroas como nas ordens pueris.
Destaco o conselheiro, desconfiado e atento – que me fez linkar às imagens dos Ewoks, de StarWars. Ah… e a referência final a destinos exóticos: Espanha, tem touradas; Portugal, tem genéricos…