É Claudio Magris quem, num dos ensaios recolhidos em Alfabetos (ed. Quetzal), deixa esta advertência: “Lendo as crónicas literárias, tem-se, em geral, a impressão de que a fama, duradoura ou efémera, encarrega-se de muitos, de todos, bem como de vários que não mereceriam nem mesmo a atenção de um dia. Entre as legiões dos obscuros cujos textos não chegam a sair da gaveta, existem, ao lado das inumeráveis veleidades patéticas ou arrogantes, alguns talentos notáveis e, talvez, algum génio. A irracionalidade e o acaso que governam cruelmente a vida, distribuindo, como de facto acontece, saúde e doença, prémios e castigos, triunfos e desastres, fazem sentir o seu arbítrio também na história literária”.
A violenta e rápida doença que sobre Luís Mourão se abateu, e que o matou na passada quinta-feira, não lhe permitiu pôr em ordem os papéis nem organizar minimamente o que tinha como mais urgente. Ficaram alguns inéditos, até romances, como confirmou ao i Raquel Gonçalves, a amiga e namorada que o acompanhou no último e desesperado embate. E mesmo com o cheiro dilacerante da morte a cercá-lo, a sua urgência no fim levou-o a focar-se nas suas leituras sobre os outros, e particularmente num conjunto de ensaios sobre um dos autores a quem mais se dedicou, Gonçalo M. Tavares.
(…) num texto publicado há alguns anos, deixa bem claro como a morte sempre foi uma aliada nas suas tão lúcidas pesquisas: “Acredito no mundo o bastante para este presente e algum futuro, mas nunca para um desejo de eternidade. Não escolhi ser mortal, eu sei, mas tê-lo–ia escolhido se pudesse. Decididamente e para todo o sempre. É a minha forma de dizer a pequenina vida que se concede às unhas, e ser isso tão certo como a finitude o é para nós (…) A tristeza repartida é como a alegria que não nos sufoca pelo seu excesso. Um dia morrerei, e só isso torna tudo verdadeiro e suportável. Um dia morrerei, e isso é o princípio da compaixão. Ou da alegria”.Avistando caudas e causas espantosas, sempre com uma firmeza serena, mesmo se o fazia da proa de um navio que naufraga, Luís Mourão era desses leitores que, com cada intervenção ou texto, faziam algo para nos desenfastiar dessa linha de escolhos que alinham os agentes da burrocracia que domina a nossa academia. Com um desassombro invulgaríssimo, lançava-se no “alto confronto” com obras capitais da literatura portuguesa, de autores como Raul Brandão, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Agustina Bessa-Luís, Herberto Helder, Mafalda Ivo Cruz e o já referido Gonçalo M. Tavares.
(…) Era um ensaísta consciente do “líquido silêncio que envolve a vida e do furor da sua sombra cortante”, capaz de guiar um leitor nessas galerias subterrâneas a que o público geral normalmente não acede, e fazê-lo seguir como embalado por um caudal de relações que a sua esplêndida intuição punha a descoberto. As suas leituras procediam, assim, a uma indagação pungente, de tal modo que as suas teses não eram meros exercícios de correspondência lógica, mas a revelação de um sentido – “moral, sensual e doloroso” -, a ponto de nos convencer de que o mundo só se deixa ler à luz de uns poucos espíritos. “A literatura era para ele uma máquina de fazer mundo e é desse fazer, lento, progressivo, espesso, que ele trata em tudo o que escreveu ou disse, com a densidade que o definia”, adianta Manuel Silvestre.
Talvez ninguém como ele pudesse inverter agora as coisas a tal ponto que, em vez de desaparecer, fosse ele a dar-nos notícia da morte, fazer a crónica desse outro mundo, sem se perder na imensidão de um território que se move como num reflexo para sempre adiado. Isabel Cristina Rodrigues, professora da Universidade de Aveiro, disse ao i que “quando soube que estava doente, Luís Mourão descobriu-se grego, ou melhor, descobriu a palavra e o sentido para aquilo que nós no fundo já sabíamos: que a doença seria nele uma oportunidade para continuar a aprender e aprender-se, redefinindo-se”. Cristina Rodrigues adianta: “Não se desafia o destino nem se negoceia com ele, aceita-se o seu poder e o seu tempo e procuramos adaptar-nos às suas leis obscuras”.
(…) “É bem verdade que o coração humano bombeia mais fábula do que sangue”, escreveu Mourão numa das últimas entradas do seu blogue, “Manchas”. Não merecia certamente que a sua biografia se encerrasse mudamente entre duas datas, num “Curriculum cadastro vizinhança” (Ruy Belo). Mas Pedro Meneses acedeu ao nosso pedido e gizou uma nota biográfica bastante completa. Ei-la:
Nasceu no Porto em 1960, licenciou-se em Filosófico-Humanístico da Faculdade de Filosofia de Braga (1983). Para Braga haveria de mudar-se ainda nos anos 80, tendo vivido nessa cidade com Laura Ferreira dos Santos. Obteve o grau de Mestre em Cultura e Literatura Portuguesas – época contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa (1990) com uma tese, em forma de diário, sobre os diários de Vergílio Ferreira intitulada Conta Corrente 6. Concluiu o seu Doutoramento em Estudos Portugueses, especialidade de Literatura Portuguesa do Séc. XX, pela Universidade Nova de Lisboa (1995) com uma tese sobre a paragem da história na ficção portuguesa contemporânea, estudo que começa em Raul Brandão e se estende até aos últimos romances de Vergílio Ferreira. Tornou-se professor Agregado em Estudos Portugueses, especialidade de Literatura Portuguesa do Século XX, pela Universidade Nova de Lisboa em 2004. Foi Professor Coordenador Principal na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo durante vários anos, tendo sido Presidente do Conselho Técnico-Científico do referido Instituto. Na ESE-IPVC, ensinou Ficção de Língua Portuguesa Moderna e Contemporânea desde os anos 80 tendo sido também investigador do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (Braga). Coligiu uma parte dos seus ensaios, originariamente publicados em várias revistas científicas como a Colóquio/Letras, a Diacrítica ou a Brotéria nos volumes Vergílio Ferreira: excesso, escassez, resto (2001) e Sei que já não, e todavia ainda (2004) publicados pela Angelus Novus, editora de que foi um dos fundadores com Osvaldo Silvestre e Américo Lindeza Diogo. O seu trabalho ensaístico das últimas décadas permanece disperso.
Um percurso crítico extraordinário, centrado na ficção portuguesa contemporânea, com ensaios e comunicações (quem fará justiça ao que eram as comunicações de Luís Mourão?, a calma com que pesava o fio da sua argumentação, tendo sido previamente com rigor científico e asceticamente reduzido ao essencial, que depois ia sendo desenrolado enquanto esmiuçava cada passo, segundo um pathos metafísico e irónico – vergiliano? – que o Luís inolvidavelmente punha em certas palavras e exatos silêncios?) em torno de vários autores, desde Raul Brandão, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Agustina Bessa-Luís, Herberto Helder, Mafalda Ivo Cruz, Gonçalo M. Tavares. Para além disso, ainda escreveu textos de índole jazzística, em particular na Zentralpark, e ensaios que mobilizavam toda a sua cultura cinematográfica (escreveu sobre David Lynch, por exemplo) mas sobretudo a musical, não tivesse sido o Luís Mourão um melómano. As exceções à regra de só escrever sobre ficção de língua portuguesa foram as incursões pela poesia de Florbela Espanca e Ruy Belo, em particular pela do último, em que se acentuava aquele modo de dizer não ao que é grande, de desejar ser um simples gato ao sol, enquanto vem um verão e depois a verdadeira estação, a carta e o horário, ficando tanta coisa por viver e dizer na fantasia de vidas cheias. Mas essas vidas cheias fariam desaprender o finito e o dever de responder ao outro, ao que é frágil, ao que se nos apresenta na sua deficiência, no seu abandono, largado pela mãe, pelo amor do absoluto entrado nas brumas do mar.
A ética tem a oportunidade de se manifestar diante da fragilidade, escreveu Gonçalo M. Tavares. Saint-Exupéry afirmou que somos responsáveis por aqueles que cativámos. O Luís exerceu exemplarmente a ética diante de quem se mostrava frágil e esteve disponível para os muitos que cativou. E estou longe de ser o único a afirmá-lo com conhecimento de causa. Perto do Luís, era difícil que a maldade alastrasse, pois a sua boa ação importava menos pela razão que a pudesse justificar, mas pelo espaço de construção e ligação que efetivamente permitia. A afabilidade era uma das suas virtudes (um anacronismo num mundo de profissionais que louva acima de tudo a eficiência e vê na pessoa afável o lento, deslocado).
Uma das grandes felicidades da minha vida foi ter sido seu interlocutor. Continuará a fazer-nos falta.