a “loucura é um fenómeno universal, próprio da natureza do espírito, interior e natural da consciência, de ser humano, e contém os vários elementos antropológicos, a razão e a pulsão intempestiva, a infinitude e a materialidade corporal. É trespassado pela liberdade, tal como exposto na Antropologia e na Fenomenologia de Hegel, exalta a natureza turva e contraditória da psique e a imprevisibilidade do existir humano opondo -se, por isso, à perspetiva redutora mecanicista psiquiatrico -fenomenológica da vida da consciência que dominou o século XX. Didaticamente, podemos perceber a loucura através de dois modelos diferentes de abordagem ao fenómeno,
(1) o conhecimento literário, filosófico e poético do excesso ontológico do si próprio individual, que é um fenómeno antropológico real, positivo. Encontramos esta visão, especialmente no impacto e na consequente transcendência pessoal que provocam os textos dos grandes pensadores sobre os leitores: o continuum de significação que ultra-passa as conceções racionais que cada um tem sobre si e sobre o mundo, conhecimento que, indo além da vulgaridade do quotidiano e do pessoal, provoca um afastamento do sujeito relativamente a si próprio: uma decalagem pessoal. A reflexão que os textos dos grandes autores causam nos leitores, atingira já cada um dos pensadores durante o ascetismo próprio do trabalho de escrita e reescrita, reflexão e compreensão, em que experimentaram períodos de oscilação com quebras psicológicas e a quase auto -alienação. Foi o que aconteceu, como a tantos outros, com Hölderlin: o afinco que dedicou à escrita, o arrebatamento que experimentou durante os períodos de reflexão, levou ao seu afastamento do mundo com o consequente desgaste intelectual doloroso.
À outra forma de captar o que seja a loucura chamo (2) a explicação marxista de loucura. Encontramo-la por exemplo no pensamento de M. Foucault, segundo o qual, considerou na sua História da loucura, a loucura é um fenómeno essencialmente socio -político engendrado pelas classes dominantes como instrumento para criar e estabelecer uma moral com o fim de consolidar poder sobre a população. Segundo este, quem seguia as re-gras dessa moral possuía bom senso e racionalidade, e portanto, era aceite pelos outros, e quem as desafiava e/ou ultrapassava era considerado louco; neste caso, ficava sujeito ao juízo dos outros, sendo então marginalizado ou institucionalizado, isto é, internado/encarcerado em instituições que tinham como função “tratar” a imoralidade do sujeito “desviado”. É desse ponto de vista que Foucault se refere à criação da rede hospitalar que governará a saúde mental em França: “o Hospital Geral [Paris, 1656] não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa”3.Dentro desta segunda perspetiva importa considerar a conceção nosológica do fenómeno loucura, isto é, a explicação medico-psiquátrica: a loucura é um fenómeno negativo, ou seja, uma ausência ou falha da capacidade intelectual, uma falência no sistema nervoso que subverte a normalidade racional e o bom senso. Esta falha da razão, segundo a psiquiatria, é a causa da obscuridade lógica e do discurso extraordinário, características da “doença mental”.
Rui Gabriel Caldeira. Uma definição de loucura. A loucura nos séculos XIX e XX e a reprovação do mito do artista “esquizofrénico”. Revista Filosófica de Coimbra. 2021. vol. 30, n.º 59. ISSN: 0872 -0851 DOI: https://doi.org/10.14195/0872-0851_59_4