# intempestivo

É muita estrada!”, dissemos. Já não nos víamos há mais de uma dezena de anos mas há reencontros assim. De abraços, olhos a marejar, risos de reconhecimento.

Em bom rigor, depois de muita estrada já não se fica num lugar qualquer, não se lê um livro qualquer, não se surpreende por qualquer coisa, não alumia por qualquer pirilampo.

Depois de muita estrada, tantas passadas dadas, caminhos desbravados e terra queimada, pisamos alegremente a relva e pousamos a mochila junto ao regato, em pleno bosque. Ou numa cadeira de esplanada à beira-rio. Ou onde o caminho nos levou, que nos fazemos ao fazê-lo.

E até nos espantamos na reciprocidade de termos feito tanta estrada!

possibilidades…

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há imagens de uma total singeleza, que transmitem ao mesmo tempo presença e abandono. Não há como decidir se a mensagem das canas de pesca é mais da espera ou da ausência, se a balaustrada protege ou separa, se o caminho de transforma ou se acaba adiante. E são exatamente estas amplas, abertas possibilidades que tornam a imagem expressiva e inquietante.

 

“homo sapiens sapiens”?! de certeza?

O homo sapiens é tido (ou tem-se)  como o único ser capaz de pensar racionalmente e o único que tem consciência de tal capacidade. Somos, portanto, animais que sabem que sabem. Este traço, de sermos e nos sabermos dotados de pensamento, permite-nos ligar coisas que parecem separadas, ver o global. Contudo, aprendemos primeiros a separar; ensinam-nos (e ensinamos) o analítico e a compartimentação.  As disciplinas são como gavetas, o conhecimento aparece primeiro parcelado.

Curiosamente, numa realidade multidimensional e complexa, a abordagem continua a ser predominantemente mono. Mono disciplinar. Linear, mecânica, disjuntiva. Aquilo a que Morin chamou «o princípio da separação». Quando o que nos rodeia e o que habita em nós é de natureza prismática, complexa.

Apelamos e apelamo-nos à compreensão do mundo e dos Outros, a partir de uma mentalidade (pensamento, pois) que tende a ser parcelar, que soma partes para pretender atingir o todo (que, como é sabido, é maior que a soma das partes). Parece existir uma estranha e inquietante dificuldade de pensar amplo, de desenvolver mentalidade alargada.

Assim,  mais parecemos homo sapiens de inteligência míope, de pensamento estreito. Quanto maiores (mais planetários, diria Morin) são os problemas, mais se desenvolve a incapacidade os pensar.  Apesar das intenções, continuamos a separar as ciências, as humanidades, as artes. Porque realmente habituados a reduzir, a separar…

Mesmo que essa seja ou tenha sido das primeiras aprendizagens, importa aprender a lidar com o global, o plural, a trama complexa (e não apenas com os fios, o padrão, o tear…). É preciso superar o cartesianismo que teima em persistir. Abrir verdadeiramente espaço ao diverso, à referencialidade múltipla, à pluralidade de linguagens e interpretações. E esta urgência é tanto ética, como política, como cultural, como pedagógica, como, essencialmente, humana.

Para animais que sabem que sabem, às vezes pensamos pouco.

# 14 intempestivos

John William Waterhouse, “Ulysses and the Sirens”, ca. 1891

É conhecida a história de Ulisses quando, de acordo com as instruções de Circe, ordenou aos homens da tripulação que tapassem os ouvidos com cera, enquanto ele próprio ficou amarrado ao mastro. Ao mesmo tempo podiam passar a salvo pelo perigo e Ulisses ouviria a canção das Sereias.

De certa forma, a alegoria do triunfo de Ulisses sobre as Sereias é incompleta…. Os poderes mágicos das sereias estavam lá e Ulisses também – outros marinheiros que se entregaram aos apelos das sereias, foram por elas destruídos. Assim, Ulisses descobriu uma forma de sucumbir à tentação – leia-se, ouvir o encanto – sem cair no encantamento. A ineficácia dos poderes das sereias deve-se, «apenas», ao ensurdecimento voluntários dos marinheiros. Na verdade, ele  implorou, debateu-se, ordenou que o libertassem, tudo em vão – não o soltaram. Não porque não quisessem, mas porque não o ouviam.

Metáforas adiante, às vezes devia lembrar-me da história e tapar os ouvidos com cera…. que as seduções e os cantos podem ter fins nefastos. Armar em herói, afinal, pode bem ser estar amarrado a um mastro, gritando sem que oiçam….

# 13 intempestivos

Há um conjunto de coisas que não se esperam…  mesmo que sejam possibilidades, assume-se que vai correr bem, porque assim foi dito. Depois, … enfim, depois é o confronto com os factos.

Diria então que a memória nos serve e apoia. E educa. Pois que os efeitos causados pelo impacto dos vividos permanecem na memória. E, querendo mais ou menos, lembrando com maior ou menor detalhe, alteram, mesmo que ligeiramente, a concepção ou o modo de olhar.

Quando alguém nos faz viver uma experiência que fica em memória específica, passa a fazer parte de algo que, de modo mais ou menos sensível, provocou alteração em nós. Ou no curso (regular) da nossa vida. E o registo mental fica, sendo que não o atenua uma conduta de “fazer de conta” que não aconteceu nada. Nem se volta ao ponto anterior da convivência ou das coisas.

É como se, mercê da memória e do pensado, “quem me trama também me educa”. E não sou mal-agradecida, por isso, vou ter de agradecer.  No limite, ou eu, ou a vida, ou Outros, hão-de agradecer.

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12 # intempestivos

… diria Nietzsche que intempestivo é pensar e agir no tempo e contra o tempo, no seu sentido histórico.

Assim, e mesmo gostando da sua invocação – ou melhor, da sua proposta:

“a minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo – todo o idealismo é mendacidade diante do necessário -, mas amá-lo…” –

não me disponho a amar o destino, como recomendou. Não tenho a sabedoria bastante para o aceitar, quanto mais amá-lo… 🙂

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# 11 intempestivos

.. por via de regra,considero que cada um segue o seu caminho, guiado pelos valores que tem, ancorado nas escolhas que pode e é capaz de fazer. Igualmente, por via de regra, entendo que cada um faz o melhor que pode, sempre. Todos temos talentos e habilidades diferentes, e podemos articular-nos e majorar-nos uns aos outros. Seja nos percursos da vida, do mundo, da profissão.

… na generalidade, não tenho paciência para gente que só consegue ver mal no que os outros fazem,  para os discursos em que a maledicência está sempre expressa e manifesta. E apetece dizer muito claramente:  saia à liça e faça melhor. Arregace as mangas e demonstre. É preciso mais coragem para dar a face e o esforço do que para se esconder no reduto da maledicência.  Como diria Arendt, não vale ficar no esconderijo, a coberto das dificuldades, e ir apontando tudo o que os outros deviam fazer. Se os tempos são sombrios, que seja neles que as pessoas se revelem.

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