a atualidade de Alexandre Herculano


«Que somos nós hoje? Uma nação que tende a regenerar-se: diremos mais: que se regenera. Regenera-se, porque se repreende a si própria; porque se revolve no lodaçal onde dormia tranquila; porque se irrita da sua decadência, e já não sorri sem vergonha ao insultar de estranhos; porque principia, enfim, a reconhecer que o trabalho não desonra, e vai esquecendo as visagens senhoris de fidalga.

Deixai passar essas paixões pequenas e más que combatem na arena política, deixai flutuar à luz do sol na superfície da sociedade esses corações cancerosos que aí vedes; deixai erguerem-se, tombar, despedaçarem-se essas vagas encontradas e confusas das opiniões!

Tudo isto acontece quando se agita o oceano; e o mar do povo agita-se debaixo da sua superfície. O sargaço imundo, a escuma fétida e turva hão-de desparecer. Um dia o oceano popular será grandioso, puro e sereno como saiu das mãos de Deus. A tempestade é a precursora da bonança. O lago asfaltite, o Mar Morto, esse é que não tem procelas.

O nosso estrebuchar, muitas veze colérico, muitas mais mentecapto e ridículo, prova que a Europa se enganava quando cria que esta nobre terra do último ocidente era o cemitério de uma nação cadáver. Vivemos: e ainda que semelhante viver seja o delírio febril de moribundo, esta situação violenta, aos olhos dos que sabem ver, é uma crise de salvação, posto que dolorosa, e lenta. Confiemos e esperemos: o nome português não foi riscado do livro dos eternos destinos.»

Alexandre Herculano
Duas Épocas e Dois Monumentos (Questões Públicas, 1843)

a atualidade de Andrade Corvo

«(…) É grave a situação de Portugal. São grandes as dificuldades que embaraçam a vida politica da nação. Confusão e incoerência nos princípios, grande desordem nas finanças; enfranquecimento deplorável da autoridade, dentro dos limites das constituição e das leis; falta de confiança na vitalidade do país e nas suas faculdades politicas e económicas; um desalento injustificável atrás do qual se esconde um perigoso indeferentismo; a violência mais exagerada nas lutas dos partidos, sem que lhes corresponda nem o vigor das convicções nem a ousadia dos cometimentos; tendência funesta a rebaixar tudo e todos; paixões em vez de crenças; preconceitos em vez de ideias; negações em vez de afirmações, tanto no domínio dos princípios como no dos factos; desconfianças em vez de esperanças e falta de fé na liberdade; são causas de desorganização e ruína para uma nação, por maior que seja o seu poder, por mais gloriosas que sejam as suas tradições (…)»

João Andrade Corvo, Lisboa, 1870
(in “Portugal como problema”, org. P. Calafate)

[ecos fárpicos] 9 – António Sérgio

“Em meu juizo, a ideia de que dissociar educação e filosofia so pode ocorrer aos individuos, ou pouco atentos, ou que consideram esta última sob um aspecto demasiado abstracto, nao na sua parte mais humana, onde a actividade filosófica — da mais viva origem e do mais largo interesse— implica as necessidades sociais e e uma teoria da educação.”
António Sérgio, Ensaios I
Creio que a principal censura que devemos fazer ao actual governo em matéria de ensino público é a seguinte. Pode ter-se como princípio fundamental da pedagogia moderna a ideia da máxima autonomia possível dos educandos, tanto na actividade estritamente discente, como nas relações do aluno com a sociedade escolar, ao passo que o que inspira fundamentalmente o Governo é o conceito diametralmente oposto, ou seja, o da heteronímia, ou o do autoritarismo, não só naquilo que aos escolares respeita mas até no que toca aos cidadãos adultos. Disse por sinal um sacerdote católico que a educaçãoé a arte de emancipar os homens, definição que me parece excelente: ao passo que o objectivo do actual Governo é o de manter os homens na tutela, educando a maioria para tutelados e seleccionando alguns para tutores dos demais. E por isso mesmo, como todos os Governos de orientação despótica, faz consistir sobretudo o progresso no número e importância das obras pública, em prejuízo do intuito de dignificar os homens, de elevar o espírito (o que pressupõe, claríssimo está, um mínimo de elevação do nível económico).
Quando pretende alardear que alguma coisa faz a favor do nosso pobre povo, alega a construção de edifícios para as escolas: o pedagogista, todavia, tem de considerar como questão basilar a da qualidade do ensino que aí se ministra, sendo que a traça do edifício da escola há-de ser estudada na dependência prévia da determinação dos métodos de um bom ensino. Na educação como nós desejamos, os laboratórios, os hortos escolares, as salas-bibliotecas das diferentes disciplinas, substituem as aulas de pedagogia antiga. De maneira que se justifica a afirmação liminar de que todos os edifícios que o Governo ergueu são impróprios para o ensino como nós queremos.

António Sérgio: Notas biográficas

Revista Lusófona de Educação, 2008,12, 13-28

[ecos fárpicos] 8 – … e 1871 aqui tão perto…

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“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.”

In As Farpas, Maio de 1871

(imagem: Cabana, Catarina Pinto, Jardins Gulbenkian)

[ecos fárpicos] 8 – Manifesto Anti-Dantas, Almada Negreiros

“O Dantas é o escárnio da consciência!

Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!

O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!

O Dantas é a meta da decadência mental!

E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!

E ainda há quem lhe estenda a mão!

E quem lhe lave a roupa!

E quem tenha dó do Dantas!

E ainda há quem duvide que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!”

excerto do Manifesto anti-dantas, Almada Negreiros

[ecos fárpicos] 7 – Actividade Exterior… Arthur Schopenhauer

As pessoas necessitam de actividade exterior porque não têm actividade interior. Quando, pelo contrário, esta última existe, é provável que a primeira seja um aborrecimento muito incómodo, mesmo execrável, e um impedimento. Este facto também explica a inquietação daqueles que nada têm para fazer, e as suas viagens sem objectivo. O que os impele de país em país é o mesmo tédio que no seu país os congrega em tão grandes grupos que chegam a tornar-se divertidos.
Recebi certa vez uma excelente confirmação desta verdade através de um cavalheiro de cinquenta anos que não conhecia, e que me falou de uma viagem de recreio de dois anos que havia feito a terras distantes e a estranhas regiões da Terra. Quando observei que por certo tivera de enfrentar muitas dificuldades e perigos, respondeu-me muito ingenuamente, sem hesitação nem preâmbulo, mas como se enunciasse simplesmente a conclusão de um silogismo: «Não tive um instante de aborrecimento»”.

Arthur Schopenhauer, in ‘Aforismos’

[ecos fárpicos] 6 – “metafísico”, H. Mencken

Um metafísico é alguém que, quando você lhe diz que dois vezes dois são quatro, ele quer saber o que se entende  por vezes, o que significa dois, e o que quer dizer são e por que dá quatro.

Por fazerem tais perguntas, os metafísicos desfrutam um luxo oriental nas universidades e são respeitados como homens educados e inteligentes. 

H. Mencken

[ecos fárpicos] 5 – Aduladores… Maquiavel

“Não quero deixar de abordar uma questão que reputo de importante e um erro do qual os principes com dificuldade se guardam, se não são prudentes ou se não têm cuidado nas escolhas que fazem. Trata-se dos aduladores, espécie de que as cortes se encontram cheias. É que os homens comprazem-se de tal modo com as coisas que lhes dizem respeito e de um modo tão ilusório, que só muito dificilmente se precavem contra esta peste. E querendo precaver-se, corre o risco de se tornar desprezível. Porque não tendes outro modo de vos protegerdes da adulação a não ser logrando convencer os outros homens de que vos não ofendem dizendo a verdade. Todavia, quando alguém vos diz a verdade, sentis a falta da reverência.Consequentemente, um príncipe prudente deve dispor de uma terceira via, escolhendo no seu estado homens sábios, devendo só a esses conceder livre arbítrio para lhe falarem verdade. E, apenas, sobre as coisas que lhes perguntardes, não de outras. Mas deve fazer perguntas sobre todas as coisas, ouvir as suas opiniões e, depois, decidir por si próprio, a seu modo. E com estes conselhos e com cada um dos conselheiros, portar-se de maneira que cada um deles perceba que, quanto mais livremente falar, tanto mais será pelo príncipe bem aceite. Fora disto, não dar ouvidos a ninguém, cumprindo com determinação as suas deliberações. Quem procede de maneira diferente, ou se deixa perder nas mãos dos aduladores ou está constantemente a mudar de opinião, conforme os pareceres que ouve, empobrecendo a estima que lhe é tributada.”

N. Maquiavel, O Príncipe

[ecos fárpicos] 4 – “Um povo”… Guerra Junqueiro

“Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;

um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, – reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta(…)

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta ate à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida intima, descambam na vida publica em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na politica portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro (…)

Dois partidos (…), sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes (…) vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, – de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar (…)”

Guerra Junqueiro, “Pátria”, 1896

[ecos fárpicos] 3 – “influenciar…” Oscar Wilde

“Influenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa própria alma. O indivíduo deixa de pensar com os seus próprios pensamentos ou de arder com as suas próprias paixões. As suas virtudes não lhe são naturais. Os seus pecados, se é que existe tal coisa, são tomados de empréstimo. Torna-se o eco de uma música alheia, o ator de um papel que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total percepção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. Hoje em dia as pessoas têm medo de si próprias. Esqueceram o maior de todos os deveres, o dever para consigo mesmos. É verdade que são caridosas. Alimentam os esfomeados e vestem os pobres. Mas as suas próprias almas morrem de fome e estão nuas. A coragem desapareceu da nossa raça e se calhar nunca a tivemos realmente. ”

Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray

[ecos fárpicos] 2 – “O país”… Eça e Ramalho

«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As falências sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia… explora. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. A intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada.»

Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, 17 de Junho de 1871

[ecos fárpicos] 1 – “é extraordinário!” Eça de Queirós

“É extraordinário! Neste abençoado país todos os políticos têm «imenso talento».

A oposição confessa sempre que os ministros, que ela cobre de injúrias, tem, à parte os disparates que fazem, um «talento de primeira ordem»!

Por outro lado a maioria admite que a oposição, a quem ela constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de «robustíssimos talentos»!

De resto todo o mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta portanto este facto supracómico: um país governado «com imenso talento», que é de todos na Europa, segundo o consenso unânime, o mais estùpidamente governado!

Eu proponho isto, a ver: que, como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!”
— Eça de Queirós, Os Maias

[ecos fárpicos] 0 | abertura

as farpas

As Farpas” é o título de uma série de crónicas de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós (apenas entre 1871 e 1872).  O primeiro número apresenta a ideia geral das chronicas – “vamos rir, pois. O riso é um castigo; o riso é uma philosophia. Muitas vezes o riso é uma salvação.” (p. 10).

“Portugal, não tendo principios, ou não tendo fé nos seus principios, não póde propriamente ter costumes. Com uma politica de acaso, com uma litteratura de rethorica e de copia, com uma legislação desorganizada, não se pode deixar de ter uma moralidade decadente” (p. 36)

Sempre associei a ideia de «farpa» ao comentário irónico a uma realidade, que, não obstante o seu carater acutilante, se constitui como crítica social e cultural de um espírito pensador. E apesar de, entre a geração de 70, não ser Ramalho Ortigão dos meus preferidos, na verdade sempre apreciei o tom de As Farpas.

“Em Maio de 1871, no  ano em que se realizam as Conferências do Casino, são lançadas as Farpas, crónicas publicadas em fascículos mensais. Projecto de ambos, de Eça e de Ramalho, em Novembro de 1872, Eça, que vai ocupar um cargo diplomático em Havana, deixa as Farpas ao cuidado de Ramalho, que continuará a escrevê-las até 1882. Eça de Queirós, referindo-se ao trabalho do seu amigo neste projecto comum, escreve que com as suas Farpas, ele «estudou e pintou o seu país na alma e no corpo». Os textos escritos por Eça, num tom mais satírico do que aquele que Ramalho viria a adoptar, são, em 1890, reunidos em dois volumes com o título de Uma Campanha Alegre. Entre 1887 e 1890, As Farpas são novamente editadas, agora em onze volumes,. Nesta edição, as crónicas serão divididas por temas: vida provincial,  epístolas, os indivíduos, o parlamentarismo, a religião e a arte, a sociedade, a capital, nossos filhos, movimento literário e artístico, aspectos vários da sociedade, da política e da administração. As Farpas  constituem uma implacável caricatura da sociedade portuguesa naquele último quarto de século. Desde a discriminação feita à condição feminina até à influência castradora da Igreja católica, passando por um Romantismo serôdio que inquina as artes e as letras, nada escapa às aceradas farpas. Muito dessa cáustica ironia, ainda hoje faz sentido, porque, decorrido quase século e meio, nem todas feras em que Eça e, sobretudo, Ramalho, cravaram os seus ferros, morreram. Muitas delas andam por aí à solta.”

In Vidas Lusófonas, Ramalho Ortigão

Em vez de «apenas» citações, esta categoria terá citações com traço de “farpa”, de ecoar um certo sentido crítico, de autores diversos cujo traço comum é terem produzido, em algum momento, texto embebido em bem humorada crítica social.