ensaio: “Esquecimento e desfiguração da memória da democracia”

Quando um ensaio começa com Paul Ricoeur, passo a ler:

“Num dos últimos livros que escreveu, La mémoire, l’histoire, l’oubli(2003), Paul Ricoeur falava da possibilidade de a memória permitir aceder, não a uma revisitação ou a uma réplica, mas a uma reapropriação lúcida do passado, mesmo daquele mais afastado ou ao qual se encontrasse ligada uma forte carga traumática.

Destacava também o poder do esquecimento, na sua capacidade para soterrar boa parte de tudo o que aconteceu, mas também na intervenção que detém na seleção, sempre parcial e fragmentária, daquilo que se considera ser merecedor de memória. Ao constatar a impossibilidade real de tudo recordar, Ricoeur vincava o caráter seletivo da memória, concluindo ser a capacidade de esquecer um dos fatores que permite reaver parte do vivido.

Dito de outra forma, se se aceitar que a memória é, como por vezes se diz, “a mãe da história”, o seu ponto de partida ou a matéria nuclear da qual esta é feita – embora “história” e “memória” de forma alguma sejam equivalentes –, ao omitir determinados detalhes enquanto seleciona outros como objeto do seu trabalho, o historiador lida de modo bastante intenso com a ofuscação ou o apagamento de parte do passado, tornando-se um dos responsáveis pela manipulação da memória partilhada.

Este esforço de seleção configura-se então como uma das duas operações centrais da memória – a outra é a intervenção do testemunho – na sua relação com a escrita da história e com o seu trabalho de análise.

Na tentativa de observar mais de perto o papel ao mesmo tempo restritivo e dinâmico que é desempenhado pelos processos do esquecimento, o antropólogo Marc Augé procurou, em As Formas do Esquecimento (2001), mostrar que a memória e o seu desaparecimento “são solidários, ambos necessários ao pleno emprego tempo”, e que para lembrar “é sempre necessário esquecer”.

Pode situar-se neste plano o combate – é mesmo de um combate que se trata – entre aqueles que em nome da pacificação dos conflitos sociais e políticos defendem, como fez David Rieff no controverso Against Remembrance (2011), que a garantia de tranquilidade das sociedades não é a sua capacidade para recordar, “mas antes a sua capacidade de esquecer de vez”, sobretudo os momentos mais perturbantes. E, do lado contrário, estão aqueles que acentuam o imperativo moral de lembrar, desde logo o que por diversas razões se encontra em vias de ser rasurado ou deturpado.

Esta afirmação não representa um paradoxo, mas a constatação de que ambos, memória e esquecimento, disputam espaços exíguos, muitas vezes vizinhos ou mesmo coincidentes, disputados por indivíduos capazes de os preencher e as sociedades de reconhecer. Ficando, todavia, sempre muito por observar e interpretar, pois, como destaca Augé mesmo no final do livro, “é preciso esquecer para não morrer”, para não perder o sentido da vida e do mundo, por causa do excesso de acontecimentos e de conhecimento.”

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Rui Bebiano, Setenta e Quatro 13 de julho de 2021

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