Citação

“―la maladie est presque toujours un élément de désorganisation et de réorganisation sociale ; à ce titre elle rend souvent plus visibles les articulations essentielles du groupe, les lignes de force et les tensions qui le traversent. L’événement morbide peut donc être le lieu privilégié d’où mieux observer la signification réelle de mécanismes administratifs ou de pratiques religieuses, les rapports entre les pouvoirs, ou l’image qu’une société a d’elle-même.”

REVEL, Jaques; PETER, Jean-Pierre, ―Le corps: l’homme malade et son histoire‖, in Fair de l’histoire (dir. LE GOFF, Jacques ; NORA, Pierre), vol. III – Nouveaux objets, Paris, Éditions Gallimard, 1974, pp. 172 – 173.

“― a doença é quase sempre um elemento de desorganização e de reorganização social; como tal, muitas vezes torna mais visíveis as articulações essenciais do grupo, as linhas de força e as tensões que o atravessam. O acontecimento mórbido pode, portanto, ser o lugar privilegiado para melhor observar o real significado dos mecanismos administrativos ou das práticas religiosas, das relações entre poderes ou da imagem que uma sociedade tem de si mesma.”

“A luta contra as invasões epidémicas em Portugal: políticas e agentes, séculos XVI-XIX”

Laurinda Abreu. 2018. A luta contra as invasões epidémicas em Portugal: políticas e agentes, séculos XVI-XIX.

“Quando, em meados do século XIV, a peste invadiu a Europa, a primeira reação foi de fuga: fuga rápida, para o mais distante possível, sem pressa em regressar, tal como, quase dois mil anos antes, havia aconselhado Hipócrates. Sem reconhecer diferenças sociais, a peste tanto podia dizimar criados quanto reis, como demonstra o caso de D. Duarte, que, em 1438, fugindo da peste de Lisboa, procurou refúgio em Évora, Avis e Ponte de Sor, acabando por sucumbir à doença que o foi encontrar em Tomar (Tavares 1987, 17-32).

Fenómenos disruptivos do quotidiano dos locais afetados, às vezes por longos períodos de tempo (Bourdelais 2003, 27-28), as epidemias, potenciadas pelas migrações (Biraben 1975, 262-286), eram um sorvedouro de vidas humanas, pondo em causa a integridade territorial dos estados, tornando-se, também por isso, uma das principais preocupações dos poderes centrais. Tendo identificado o problema, as cidades do Mediterrâneo, da Croácia e da Itália, foram as primeiras a encontrar soluções de combate e prevenção, pouco depois tomadas como modelo pelos restantes estados da Europa (Cipolla 1979; Tomic e Blažina 2015). Ao menor rebate de peste na vizinhança, termo que podia referenciar várias outras doenças, encerravam-se as portas das urbes, defendidas por homens armados, que exigiam a quem queria entrar a apresentação de uma prova escrita (carta de saúde) atestando que não tivera contacto com a moléstia. No caso de a doença já se ter instalado, colocavam-se bandeiras brancas nas muralhas e implementava-se uma série de medidas sanitárias tendentes a minorar o risco de contágio: embora desconhecendo a etiologia da doença, a consciência do seu carácter contagioso levava as autoridades a rapidamente assumir o isolamento e a desinfeção como o método mais eficaz de controlar a expansão das epidemias (Slack 1985).

Foi esta forma de proteção das cidades, assente nas quarentenas, lazaretos e cordões sanitários, que se aplicou às fronteiras, terrestres e marítimas. A defesa das fronteiras contra a invasão de um inimigo (a doença e o seu portador) que poderia pôr em causa não só a economia e a sociedade como a segurança nacional torna-se uma preocupação central para os governos, que para ela convocam, ainda que em diferentes escalas, um conjunto diversificado de instituições. No século XIX, a cólera viria questionar a utilidade dos meios de proteção tradicionais revelados impotentes perante as características da nova doença (Baldwin 1999) e o facto de as grandes potências começarem a pensar a Europa Ocidental como um espaço aberto, sem obstáculos condicionantes da livre circulação (Harrison 2013).”

“A morte que vinha do mar” (Barros 2013) constituiu, desde cedo, uma preocupação de relevo na ação governativa, levando-a a centralizar meios materiais e humanos na fronteira marítima, sobretudo no entorno de Lisboa, que, como reconhecia o regimento de 1526, sendo “um lugar grande, de grande tráfego”, era “quase impossível (…) estar muito tempo sem peste”.4 São muito recuadas as informações sobre a realização do controlo sanitário dos barcos entre a Trafaria e Belém, embora só tivessem sido construídas estruturas fixas em 1492, regulamentadas em 1514.5 A partir de 1565, iniciou-se a expansão do complexo sanitário e portuário, que passou a contar com o Lazareto, na Trafaria (em funções até 1816, quando foi transferido para a Caparica), Torre de Belém, porto de Belém e sua extensão em Paço d’Arcos. Só nos finais do século seguinte, em 1695, surgiria o primeiro Regimento para o porto de Belem.

“O primeiro cordão sanitário na fronteira terrestre foi instalado em 1800, no quadro da epidemia de febre-amarela que grassava em Cádis, e o segundo aquando da epidemia de peste e de febre-amarela em Málaga, em 1804, ambos sob a orientação da Intendência-Geral da Polícia. O conhecimento que o intendente-geral da Polícia tinha do território e o circuito de comunicação que estabelecera com os funcionários da administração central (juízes de fora, provedores e corregedores de comarca) e, desde 1796, a experiência no recrutamento militar, terão pesado na decisão do secretário de estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de entregar a tarefa a Pina Manique. A chegada da Intendência-Geral da Polícia ao palco das operações ocorria num contexto particularmente violento do ponto de vista epidémico, ligado, como quase sempre, a um maior dinamismo das transações comerciais. Da Crimeia ao Norte de África, passando por todos os portos do Mediterrâneo, da América do Norte ao Brasil, a peste e a febre-amarela mantinham Lisboa em permanente sobressalto, sob o terror dos números da morte nos locais infetados e de pormenorizadas descrições da sintomatologia das doenças. Por precaução, poucos barcos escapavam às quarentenas. Na Trafaria, o lazareto e os anexos transbordavam de pessoas e de mercadorias. Em termos políticos, o momento era de expectativa, já que o regresso de Napoleão Bonaparte a França voltava a pôr Portugal sob tensão no contexto do Bloqueio Continental.” aqui

Revolução inacabada. O que não mudou com o 25 de abril.

“O que não mudou com o 25 de Abril? Apesar de todas as conquistas de cinco décadas de democracia, há características na sociedade portuguesa que se mantêm quase inalteradas. Este livro investiga duas delas: o elitismo na política e o machismo na justiça.

O recrutamento para a classe política dirigente praticamente não abrange pessoas não licenciadas e com contacto com a pobreza, e quase não há mobilidade do poder local para o poder nacional. No sistema judicial, a entrada das mulheres na magistratura e a mudança para leis mais progressistas não alteraram um padrão de baixas condenações por crimes sexuais, cometidos sobretudo contra mulheres.

Cruzando factos e testemunhos, este é o retrato de um Portugal onde a revolução pela igualdade está ainda inacabada.” aqui

revisão umbrella acerca das preferências do doente e da família sobre o local de cuidados no fim de vida e local de morte

revisão umbrella acerca das preferências do doente e da família sobre o local de cuidados no fim de vida e local de morte,  projeto “EOLinPLACE – Choice of where we die: a classification reform to discern diversity in individual end of life pathways”, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação no âmbito do Programa Horizonte 2020 da Comissão Europeia. Neste trabalho, recolheram e analisaram dados de 309 estudos publicados nos últimos 50 anos, em 307 países e nos 5 continentes, com dados referentes a mais de 100.000 doentes (adultos e crianças), com várias doenças (oncológicas e não oncológicas) e de mais de 30.000 familiares cuidadores. 

Podem aceder ao artigo completo em https://www.jpsmjournal.com/article/S0885-3924(24)00016-2/fulltext e aos principais resultados AQUI, entre os quais INFOGRAFIA e Resumo em linguagem clara.

Gafarias e lazaretos | Beira Interior

Antes da fundação das Misericórdias: pobreza, assistência e solidariedade
no Interior Beirão
. Maria da Graça Vicente.

“As mais antigas referências que conhecemos, nesta região, são para dois hospitais na vila da Sertã – o hospital de S. Pedro, cuja documentação tinha já desaparecido no século XVIII e o hospital de S. João. Este pequeno hospital era administrado por uma confraria antes de ser incorporado na Misericórdia da Sertã. As confrarias, muito ligadas ao culto dos mortos, eram associações de homens livres, não necessariamente de uma mesma profissão ou grupo social, que tinham como objetivos a ajuda mútua, material e espiritual, aos seus membros (BEIRANTE, M. A. G. R., 1990; TAVARES, M. J. P. F., 1989: 101 e sgs.; e AZEVEDO, C. M., 2000). Os membros destas irmandades, movidos pelos preceitos evangélicos instituíam pequenos estabelecimentos de acolhimento – hospitais ou albergarias, também designadas por «albergues», «caridades», «alcaçarias» e «hospícios». Estas instituições tiveram a seu cargo a assistência e ajuda aos desfavorecidos e enfermos até à reforma da saúde encetada pela dinastia de Avis (MENDONÇA, M., 2004: 220-241). (…)

No largo conjunto dos pobres e enfermos, os leprosos, ou gafos, residentes, ou andantes, constituíam um grupo distinto. A lepra atacava por igual pobres e ricos, mas nem todos sofriam as suas consequências da mesma maneira. Para lhes dar assistência, mantendo-os afastados do convívio dos sãos foram criadas as gafarias ou leprosarias, por iniciativa régia, municipal ou de particulares. Apenas encontramos duas gafarias, na região, uma em Castelo Branco para a qual temos escassas e tardias informações e outra na Covilhã, embora a memória toponímica registe a presença de gafos e gafarias noutras povoações, de que são exemplo a Sertã e Manteigas como já desenvolvemos (VICENTE, M. G., 2014: 71-76). A primeira, de que temos conhecimento, surge na Covilhã, nos inícios do século XIII, nos arrabaldes junto à igreja de S. Lázaro. Contudo, só volta a ser documentada nos inícios do século XVI, quando foi elaborado o tombo dos seus bens, constituídos por propriedades rústicas em torno das suas casas de morada. Pouco mais sabemos sobre esta instituição. De igual modo desconhecemos os instituidores e data da instituição da gafaria de Castelo Branco, sediada nos arrabaldes da vila e apenas documentada no século XVI.”

Assistência e solidariedade em tempos medievais Gafos e Gafarias na Beira Interior

“Em Portugal, encontramos três modalidade de gafarias, quanto à sua instituição e administração: as gafarias criadas por iniciativa régia, como em Coimbra; as gafarias de administração municipal, de que são exemplo, as de Lisboa e Almada; havendo ainda um terceiro modelo – as gafarias instituídas por iniciativa das pessoas atingidas
pela doença, que se colocavam sob a proteção do rei, como foram os casos das gafarias de Santarém e Beja. Tinham, contudo, em comum a sua localização afastadas dos centros urbanos, fora da segurança de muros de vilas e cidades, ocupando os arrabaldes. Erguidas fora dos recintos muralhados mas, relativamente perto, á distância do lançamento de uma pedra, segundo Le Goff. Ficando, assim, sob o olhar vigilante da comunidade e, reproduzindo espacialmente a organização do espaço social dos núcleos urbanos.
Sob o ponto de vista administrativo tinham um provedor, um escrivão e mamposteiro, nomeados pelo rei ou escolhidos pela comunidade gafa e aprovados pelo monarca. A criação das gafarias foi a maneira encontrada para prestar assistência e caridade, protegendo a comunidade sã do contágio. Ao longo dos séculos foram-se produzindo diversas normas referentes ao viver quotidiano dos leprosos – sobre o casamento, vida conjugal e castidade, vestuário, circulação. Porém, cada instituição tinha os seus próprios regimentos.” (p. 74) continuar a lerhttps://www.historiadamedicina.ubi.pt/cadernos_medicina/vol28.pdf

A Biblioteca.

“Em Portugal, 303 Bibliotecas Municipais, integradas numa rede nacional criada em 1987, procuram cumprir o desígnio estatal de promoção da leitura junto de todos, das crianças aos idosos, de forma aberta e inclusiva. Este livro retrata 21 destas bibliotecas, no continente e nas ilhas, reproduz de forma vívida a experiência de observação do seu funcionamento quotidiano e os testemunhos de bibliotecários, técnicos e leitores. São projetos muito diversificados, em constante movimento e crescimento, mas são sobretudo espaços feitos para nós e que existem como extensões de nós. Há quem lhes chame de segundas casas.”

Lê-se como um livro de contos, com 4 a 5 páginas por cada biblioteca 🙂

Gafarias e lazaretos | Lazareto da Trafaria

O registo mais antigo encontrado com a designação de Lazareto da Trafaria foi em uma Consulta da Câmara [de Lisboa] a El-Rei de 22 de abril de 1690, transcrito em: OLIVEIRA, Eduardo Freire – Elementos para História do Município de Lisboa, 1ª Parte, Tomo IX. Lisboa, Typographia Universal (1896) p.168-171. https://archive.org/details/elementosparahis09freiuoft/page/168/mode/2up?view=theater

A Trafaria nasce “à sombra” de Murfacém que era a povoação importante. O local plano, na beira do rio, onde hoje está estabelecida a localidade histórica era um grande areal. A Trafaria nasce no período de Dom Sebastião em consequência de uma grande obra que primeiro começou por se chamar Impedimento e só partir de 1690 se começou a chamar de Lazareto. As pessoas começaram a ocupar o local devido à atividade gerada por esse empreendimento.

Durante o século XVII começaram os indícios de estabelecimento do que poderíamos
chamar de povoado, que a partir da dobragem do século se estabeleceu e cresceu. Em
1709 começam a surgir os primeiros registos de reclamações dos serviços do Lazareto
relativamente aos habitantes locais que tinham construído suas habitações muito
próximo ao Lazareto, especificamente por questões relacionadas à insalubridade e à
saúde.
Posteriormente em 1751, no início do governo de Marquês de Pombal, se estabeleceu
a estratégia governamental de consolidação da posição de Portugal além mar, da
colonização comercial e populacional. Nessa altura esta grande obra, o Lazareto, é
adaptada ao presídio para deportação de presos, e a população da Trafaria tem um
crescimento exponencial.

Os presos deportados para as colônias portuguesas eram mantidos na Trafaria enquanto esperavam seu embarque, poderiam ir para o Brasil, para Índia ou para África. Nesse período a Trafaria servia de estratégia global de colonização. Além desses presos que seriam deportados, na guerra civil de 1829/1833 o presídio passa a receber também presos políticos (contra o miguelismo) que cumpriam sua pena naquele local, gerando uma maior demanda local de condições do estabelecimento populacional. Para se ter uma ideia, a população civil na época era cerca de 1300 pessoas (1830 antes das epidemias, quando Presídio e Forte foram reativados). No fim 1831 em plena guerra civil e depois da 1ª fase da epidemia da cólera morbus, entre guarnição militar e civil e prisioneiros, contavam-se 805 pessoas residentes no Presídio/Forte enquanto a população civil deveria ser entre 1200 e 1250 pessoas, ou seja, na Trafaria tinha-se passado de 1300 para cerca de 2000 pessoas em ano e meio. Assim, a Trafaria foi sempre lugar de passagem.” (p. 297-8).

Larissa Malty. Participação Social Decorrente da Implantação de Megaprojetos em Pequenas Comunidades: o caso da Trafaria, estuário do rio Tejo. Doutoramento em Ecologia humana.

Mulheres do Meu País, Maria Lamas

Todas as mulheres do povo se parecem umas com as outras, vivam onde viverem… A sua natureza é a mesma. Mais ou menos rudes conforme o seu nível de vida, todas são irmãs na luta, na resistência ao trabalho e ao sofrimento, no heroísmo obscuro… A força que as impele tem raízes fundas, na terra e na própria vida.

Maria Lamas, As mulheres do meu país, 1948, p. 204

Em 2023 foi lançada a edição facsimilada da obra de Maria Lamas, As mulheres do meu país, publicada em fascículos, entre 1948 e 1950. A obra foi publicada como originalmente, em 15 fascículos mensais, a partir de abril de 2023. (aqui)

Apresentação pela Caminho

“MULHERES DO MEU PAÍS ” E O TRABALHO NO ESTADO NOVO: da retórica do regime à realidade do trabalho no feminino

Gafarias e Lazaretos | lazareto da Trafaria

Raquel Viveiros (2019). Análise urbana e património arquitetural da Trafaria. ISCTE-IUL, Dissertação de mestrado. http://hdl.handle.net/10071/20289

“A Trafaria é uma freguesia pertencente ao concelho de Almada. Valorizou-se a partir de 1565, quando o Cardeal D. Henrique mandou construir um local de quarentena – Lazareto. Ganhou importância graças à sua posição geográfica, que potenciou a função militar e de estância balnear.” (resumo).

“Até ser construído o Lazareto na Trafaria (1565), muito limitados são os dados relativamente à origem da vila, havendo apenas alguns apontamentos sobre vestígios
arqueológicos Paleolíticos em Brielas, doação de terras de Almada às ordens religiosas e, ainda, a doação de D. Afonso V a Álvaro Távora8 (Leal, 2014, p. 8). Apesar de não constarem registos de povoamento na Trafaria, o mesmo não se verificou nas encostas de Murfacém (ou “Morfácem”) e Alpena, as quais já se encontravam com algum desenvolvimento populacional devido às quintas que os fidalgos e nobres possuíam. Até então, a Trafaria encontrava-se descrita apenas como uma zona de praia (Leal, 2014, p. 34)” (idem, p.13)

“A população, ainda que reduzida, fixa-se perto do Lazareto, após a sua construção. A
referência ao Lazareto vai ser recorrente, já que esta infraestrutura que, inicialmente, começou por ser um local para quarentenas, ao longo dos tempos, vai adquirindo várias funções paralelas. “À medida que crescia a importância do impedimento, logo houve quem se estabelecesse na proximidade, iniciando-se a Trafaria como local de habitação e atividade social […] esses primeiros moradores que em 1700 não deveriam exceder as quarentas pessoas […]” (Leal, 2014, p. 9). ” (p. 19)

“Sabe-se que, nos finais do século XVII, a pesca, em toda a Caparica, ainda não se
encontrava desenvolvida. Eram muito poucos os pescadores e, menos ainda, os donos de embarcações próprias. Entende-se, assim, que, por esta altura, a grande maioria habitava nas zonas mais altas e interiores (Murfacém, Sobreda e Funchal) em vez de nas áreas ribeirinhas como Banática, Porto Brandão e Trafaria (Leal, 2014, p. 59). “Ao lado das tripulações dos navios, gente que não permanecia por muito tempo, as
poucas pessoas que viviam na Trafaria formavam um núcleo habitacional com atividade económica ligada sobretudo ao Lazareto: serviços de transporte fluvial e fornecimento de comestíveis. A pesca praticada pelos pioneiros da Trafaria seria para auto consumo possibilitando algum rendimento eventual na venda de peixe ao pessoal do Lazareto” (Leal, 2014, p. 59).” (p. 29)

“A construção do Lazareto criou novas atividades na envolvente.
Com isto, independentemente da natureza da carga, quer se tratasse de pessoas ou
produtos, tudo aquilo que fosse considerado suscetível de conter alguma doença era
reencaminhado para este lugar – “[…] estabelecimento afecto aos serviços aduaneiros da Alfândega do Porto de Lisboa, de desinfecção de mercadorias, oriundas dos países de que se suspeitava ou estavam com focos de infecção de febre amarela ou, mesmo, de outras epidemias.” (Raposo, 1999, p. 9). Apesar de funcionar como local para a cura de epidemias, confirmou-se entre a população lá residente, a necessidade de “assistência religiosa […] para conforto espiritual dos quarentenários […]”(Leal, 2014, p. 86). Por isso, em 1678, construiu-se uma Ermida (Nª Srª da Saúde) dentro dos limites do Lazareto. Já em 1683, por necessidade estratégica militar, a mando de D. Pedro II, foi construído um forte junto ao Lazareto (fig.28). Uma vez que este se encontrava delimitado por muros, não tardou que, a partir de 1751, começasse a servir de presídio para alojar condenados que esperavam para serem deportados (Leal, 2014, p. 88).” (p.43)

” observa-se que “[…] face à necessidade logística para receber as levas de
presos que iam chegando para deportação, para garantir os serviços de quarentena e para assegurar a guarnição militar, as instalações revelavam-se desadequadas […]” (Leal, 2014, p. 89). Procedeu-se assim à transferência do Lazareto para a Torre de S. Sebastião/Torre Velha, em 1816, o que causou a desativação de todo o complexo. A partir daí, este edifício passou por vários períodos de sucessivas ativações, abandono e reativações.
Em 1830, durante as guerras civis que assolavam o país, através do Real Corpo de
Engenheiros, ocorre a recuperação do Presídio que não tardou a estar novamente cheio de presos. Porém, as instalações continuavam a ser muito precárias para a quantidade de pessoas que lá estava (Leal, 2014, p. 92). Com o fim do período miguelista, o forte, presídio e ermida voltaram novamente a ficar ao abandono” (p. 44)

Outra fonte: Larissa Malty. Participação Social Decorrente da Implantação de Megaprojetos em Pequenas Comunidades: o caso da Trafaria, estuário do rio Tejo. Doutoramento em Ecologia humana.

“A Trafaria sítio está localizada entre a encosta de Murfacém e a elevação da Raposeira, e foi nesse local que, em 1565, o Cardeal D. Henrique, a mando de Dom Sebastião ordenou que fossem contruídas as Instalações do Lazareto, “um local para a quarentena das tripulações dos navios provenientes dos locais afetados com a peste”.
Assim, foram construídas, nesse sítio, onde anteriormente dominava a ocupação rural
com exploração agrícola, quintas e conventos, as primeiras instalações a partir das quais a aglomeração populacional teve seu início. Foi em 1678 a contrução da ermida, que posteriormente assumiu o nome de “Nossa Senhora da Saúde”, para que pudesse confortar espiritualmente os quarentenários e também aqueles que trabalhavam no “impedimento”. Alguns poucos mais tarde, em 1683 que se deu a instalação do Forte, a primeira estrutura militar junto ao impedimento complementanto, desta forma as funções religiosa e militar para além das funções fiscais e aduaneiras que a Trafaria já comportava. “

“A partir de 1751 o local de quarentena foi reformado, ganhando mais uma utilidade: a de Presídio do Lazareto. Assim, no século XVIII a Trafaria passa de local de quarentena de tripulações vindas “de outras partes que estão impedidas de maldades”
a local de envio de sentenciados que estivessem doentes para que pudessem se convalescer antes de embarcar para a Índia, África ou Brasil. Inicia-se nessa altura o
estigma de uma localidade destinada ao depósito de tudo quanto era indesejável para
a margem direita do Tejo, onde reinava Lisboa, a capital do país. Foi precisamente por meados do século XVIII que as instalações do Lazareto iniciaram a sua função como Presídio. Afastada o suficiente para não incomodar, próxima o suficiente para controlar, transformava-se a Trafaria em “depósito” de condenados a degredo. Foi esta a marca mais duradoura e conhecida, até hoje associada à Trafaria (Leal, 2014, p. 11).” (p. 107)

“No século XVIII, portanto, acumulando funções de local de quarentena de
pessoas e mercadorias e presídio, estabelece-se um cenário de superlotação do Lazareto e projetos para sua ampliação, incluindo a construção de uma Ermida. Sete anos depois, D. Pedro II tomava a iniciativa de adaptar parte das instalações do Presídio do Lazareto para que servisse também como fortaleza militar (Leal, 2014b). Foi a partir de 1816, quando o uso do presídio na Trafaria deixou de ser importante em função do contexto político da época e da relocação do Lazareto da Trafaria para o Edifício da Torre de S. Sebastião de Caparica, a Torre Velha, que inicia-se um período de redução da atividade local e abandono dos antigas instalações que seriam pouco a pouco ocupados pela população para uso habitacional e armazenamento.” (p. 108-9)

Expressões idiomáticas

“levar a carta a Garcia”

“meter o Rossio na rua da Betesga”

“no tempo da Maria Cachucha”

– “résvés Campo de Ourique”

“tirar o cavalinho da chuva”

“erro crasso”

“ficar a ver navios”

“jurar a pés juntos”

salvo pelo gongo”

“cair o Carmo e a Trindade”

“ir aos arames”

“sem dizer água-vai”

“Maria vai com as outras”

Gafarias e lazaretos | Antigo Lazareto de Lisboa

Carlos Costa (2019) O Lazareto de Lisboa. Projecto de restauro, requalificação e reutilização de um equipamento descontinuado em ruínas.

“O regime de asilo necessitava de um lugar que fosse privilegiado a nível de acessos marítimos, mas que, ao mesmo tempo, permitisse o isolamento para prevenir a propagação de doenças nas cidades que servia. De certo modo, devido à sua clara separação (figura 23) e, simultaneamente, proximidade da capital, sentiu-se a necessidade de ser criada a defesa central das epidemias em Almada (figuras 24 e 25), criando uma muralha de água entre a cidade e o hospital. Assim, o Lazareto de Lisboa ficou localizado na margem sul do Tejo, à beira do rio, implantação que assegurou o
afastamento da cidade e ao mesmo tempo uma boa acessibilidade, pois possuía um porto próprio. Neste caso, o rio funcionou como um mecanismo de defesa natural: a passagem de qualquer navio era feita obrigatoriamente pela fortaleza velha (antiga guarnição e linha de defesa do Tejo), onde eram analisados todos os factores e documentos para decidir se o navio e os seus tripulantes permaneceriam em quarentena ou se era necessário mais tempo de espera para autorizar o desembarque.
Existiam 3 tipos de casos: os “sujos”, que teriam que permanecer a quarentena inteira no lazareto; os suspeitos, que permaneceriam menos tempo e numa ala à parte; e por fim, os “limpos”, que geralmente provinham de cidades que possuíam lazaretos ou que se sabiam que estavam livres da peste.” (p. 18)

Inicialmente, em Almada, no século XV, foi construída uma fortaleza militar, a Torre Velha ou Torre de S. Sebastião da Caparica, parte integrante da linha de defesa da barra do Tejo. Mais tarde, foi construída a Torre de Belém para cruzar a linha de fogo com aquela fortaleza. A Fortaleza da Torre Velha teve como núcleo primitivo uma torre fortificada mandada erigir por D. João II no final do século XV com o objetivo de defender a barra do Tejo, cruzando fogo com uma fortificação que se projectava
edificar em Belém.

Na Torre Velha, em 1814, foi instalado um lazareto provisório, mas devido à falta de condições, em 1850, foi projectado o Lazareto de forma a prevenir, com maior eficácia, que as epidemias chegassem à capital. O projecto novo (figuras 26 e 27) incluía um hospital de pragas, lavandarias, quartel e habitações para os funcionários.

Essencialmente temos dois tempos diferentes na fase de construção do lazareto. O primeiro, o edifício central e as enfermarias (zona proposta das hortas e estufas). O segundo é do edifício dos internamentos. Ambos com materiais usados durante a
revolução industrial, tijolo “burro” e aço. E com um estilo arquitectónico despojado e de base clássica, chamado de estilo chão.
Em 1919, o Lazareto já não possuía as suas funções originais, tendo sido transformado numa prisão. Em 1928, passou a albergar o Asilo 28 de Maio, dirigido por religiosas e
destinado a raparigas pobres. Em 1942 foi integrado na Casa Pia de Lisboa e chegou a ter 465 alunas. O abandono do edifício deu-se em 1958, depois da derrocada de um telhado, na noite de 6 de Janeiro, ter provocado duas vítimas entre as alunas. Voltou a ser ocupado a partir de 1974, por mais de seis centenas de pessoas vindas de África durante a descolonização. Um novo acidente, que atinge mais duas crianças, ocorre em 1996 e leva ao encerramento definitivo.
Todos os usos descritos documentam várias formas de exclusão social, reportando aos mais diversos programas: hospital de doenças transmissíveis, prisão, orfanato, campo de refugiados (neste caso, retornados da Guerra Colonial).