“Desde meados do século XIX que se anuncia uma intensa revolução pictórica. O desejo de romper com os valores da Academia tornou possível uma transformação profunda no olhar sobre a realidade, desencadeando uma série de movimentos que decompuseram os modelos de representação tradicionais e afirmaram uma nova visão do mundo. Entendida, até então, como estática e objectiva, a realidade passa a ser encarada de uma forma dinâmica, desdobrando-se numa diversidade de perspectivas. O papel do artista altera-se também: o objecto de representação depende agora da sua óptica subjectiva e não apenas de referências externas. As realidades exterior e interior tornam-se inter-comunicantes e os contornos que as delimitam cada vez mais subtis…”
“Este trabalho questiona a relação entre loucura e pintura contemporânea, com particular incidência nas concepções teóricas e experiências museológicas que se desenvolveram, em torno deste tema, na primeira metade do século XX. A problemática assim definida insere-se, todavia, numa paisagem mais vasta da história da arte. É indispensável remontar a meados do século XIX para tentar compreender, através de obras exemplares, a tendência para a “interiorização do olhar” no limiar da
modernidade. Entendo por “interiorização do olhar” o processo gradual de subjectivação da percepção do mundo. As primeiras etapas deste processo consistem no questionamento das formas convencionais de representação da realidade exterior,
exemplarmente ilustrado pela pintura de Gustave Courbet e Édouard Manet. Num segundo momento, assistimos à exploração de dimensões profundas da vida psíquica,
associadas no início do século XX à noção de inconsciente. Os cruzamentos entre arte e psicologia revelaram-se particularmente fecundos a partir deste momento, motivando o surgimento de novas ideias em ambos os domínios. O processo criativo de muitos artistas foi influenciado pelas descobertas da psicologia que, por seu turno, encontrou na arte um instrumento fundamental de compreensão do psíquico. O tema da loucura na pintura contemporânea insere-se neste contexto. Ele é, no entanto, de tal modo amplo e controverso que se torna imprescindível delinear fronteiras que circunscrevam os limites da reflexão. Estas fronteiras são inevitavelmente provisórias. Elas definem o estado actual do nosso entendimento sobre o tema”…
Sara Gomes da Silva. A loucura na pintura contemporânea: a descoberta do mundo interior. Tese de mestrado, Arte, Património e Teoria do Restauro, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2013. p. 1-2. https://repositorio.ul.pt/handle/10451/10130. Resumo: “A reflexão desenvolvida neste trabalho dá particular atenção à emergência histórica da relação entre arte e loucura. O processo de interiorização do olhar do artista contemporâneo constitui o contexto cultural mais abrangente em que esta problemática se inscreve. Desta perspectiva, a descoberta do inconsciente desempenha um papel determinante. A relação entre criação artística e inconsciente suscitou o interesse de grandes figuras da psicologia moderna (Freud e Jung) e concretizou-se em textos da maior importância. Mas são contributos teóricos como os de Prinzhorn, Dubuffet, Osório César e Nise da Silveira que merecem maior destaque neste trabalho. Eles tornaram possível novas formas de reflexão sobre o espaço museológico, abrindo-o às colecções reunidas por estes autores. Debruçamo-nos, por fim, sobre a obra de Pollack – testemunho de uma singular viagem ao inconsciente. Ela constitui uma ilustração privilegiada da importância das relações entre criatividade artística e loucura na história da arte.”