Cartas – Eça de Queiroz, Carta à Companhia das Águas | 2

Ilus. e Ex.mo Senhor Carlos Pinto Coelho

digno director da Companhia das Águas e

digno membro do Partido Legitimista:

Dois factos igualmente graves e igualmente importantes, para mim, me levam a dirigir a V. Exa. estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças Carlistas sobre as tropas Republicanas, em Espanha: o segundo é a falta de água na minha cozinha e no meu quarto de banho.

Abundam os Carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Exa., a responsabilidade da canalização e a do direito divino.

Se eu tiver fortuna de exacerbar até às lágrimas a justa comoção de V. Exa., que eu interponha o meu contador, Exmo. Senhor, que eu interponha nas relações de sensibilidade de V. Exa., com o Mundo externo; e que essas lágrimas benditas de industrial e de político caiam na minha bandeira!

E, pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Exa. o permite, dos nossos contratos. Em virtude do meu escrito, devidamente firmado por V. Exa., e por mim, temos nós – um para com o outro – um certo número de direitos e encargos. Eu obriguei-me, para com V. Exa., a pagar a despesa de uma encanação, e aluguer de um contador e o preço da água que consumisse.

V. Exa. fornecia, eu pagava. Faltamos, evidentemente, à fé deste contrato; eu, se não pagar, V. Exa., se não fornecer.

Se eu não pagar, faz isto: corta-me a canalização.

Quando V. Exa. não fornecer, o que hei-de fazer, Exmo. Senhor? É evidente que para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso, no análogo àquele em que V. Exa. me cortaria a canalização, de cortar alguma coisa a V. Exa.

Oh! E hei-de cortar-lha!…

Eu não peço indemnizações pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água. Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhe desgostos nem prejuízos…

Quero apenas esta pequena desafronta, bem simples e bem razoável, perante o direito e a justiça distribuída: – quero cortar uma coisa a V. Exa.!

Rogo-lhe, Exmo. Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu posso cortar a V. Exa.

Tenho a honra de ser

De V. Exa. com muita consideração

e com algumas tesouras

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# 1  Cartas – Jaime Cortesão, Jovem amigo

Autor: LN

LN é sigla de Lucília Nunes. Este blog nasceu no Sapo em 2001. Esteve no Blogspot desde 01.01.2005. Importado para Wordpress a 21.10.2007. Ligado ao FaceBook desde 13.12.2010 (e desligado em 2017).

7 opiniões sobre “Cartas – Eça de Queiroz, Carta à Companhia das Águas | 2”

  1. Não há dúvida que o Eça foi um grande escritor que continua sempre actual. Nesta altura em que tanta empresa fornecedora não só de água como também de vários tipos de energia e muitas também de vários tipos de comunicações todos os dias corta os seus serviços a tante gente, é caso para esta gente perguntar o que é que se pode cortar a estas empresas quando isso acontece com as contas em dia.
    Esta carta até poderia servir de minuta, com as devidas adaptações para os novos e frequentes casos.

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  2. Claro, muito bem escrito e divertido. Apesar da atualidade do texto, hoje seria difícil dar um tom pessoal a uma reclamação do mesmo género. Já não há nenhum “Diretor”, só há endereços eletrónicos por vezes acessíveis apenas depois de registo e de se demonstrar que não se é robot. Uma mensagem semelhante à do Eça seria liminarmente eliminada, essa sim por um robot de escolha de estilo. Tornou-se impossível mostrar o nosso descontentamento com os serviços de forma original.

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